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Tricoleucemia. Um caso clínico num contexto infeccioso

Livro de casos clínicos - 2019 - Caso 3

Sumário

Reportamos o caso de um homem de 39 anos que se apresentou com febre, náuseas, vómitos e diarreia. Referia múltiplos episódios infecciosos no último ano. No exame objectivo manifestava um abdómen doloroso nos quadrantes superiores e mucosite / faringite exuberante. Em termos analíticos revelou uma ligeira leucopénia com neutrófilos no limite inferior do normal, monocitopénia, trombocitopénia moderada a grave e elevação dos marcadores inflamatórios. A observação morfológica do sangue periférico (SP) revelou neutrófilos com alterações sugestivas de infecção bacteriana e presença de algumas células linfóides com morfologia sugestiva de tricoleucócitos, confirmadas por imunofenotipagem por citometria de fluxo e pelo exame histológico e imunohistoquímico da medula óssea. Na TAC toraco-abdomino-pélvica observava-se envolvimento significativo das cadeias adenopáticas mediastínicas, abdominais e pélvicas associadas a hepatoesplenomegalia homogénea.

Introdução

Embora a tricoleucemia (Hairy Cell Leukemia; HCL) seja uma neoplasia linfóide de células B maduras rara, os autores realçam a importância de, perante doentes com 1 ou mais citopénias, monocitopénia confirmada no esfregaço de sangue periférico (ESP), particularmente mas não exclusivamente, em contexto infeccioso e em doentes com ou sem esplenomegália, ser efectuada uma pesquisa cuidadosa de tricoleucócitos no esfregaço de sangue periférico.

Caso

Um homem de 39 anos recorreu ao atendimento permanente hospitalar com quadro de febre associado a náuseas, vómitos e diarreia com 3 dias de evolução, que automedicou com ibuprofeno em alta dose. Apresentava antecedentes pessoais de hábitos toxicofílicos e história de múltiplos episódios infecciosos no último ano. No exame objectivo estava estável do ponto de vista hemodinâmico e ventilatório, embora desidratado, confuso, mas sem défices neurológicos focais ou sinais meníngeos, abdómen doloroso nos quadrantes superiores, sem esplenomegália palpável e com mucosite / faringite exuberante. Coexistia um quadro respiratório traqueobrônquico. Em termos analíticos apresentava ligeira anemia (12,8 g/dl) macrocítica (106,3 fL), ligeira leucopénia (3,4 x10^9/L) com neutrófilos no limite inferior do normal (2,0 x 10^9/L), monocitopénia (0,02 x 10^9/L), trombocitopénia moderada a grave (55 x 10^9/L), elevação dos marcadores inflamatórios (PCR 33 mg/dL), insuficiência renal (ureia/creatinina 80/2,6 mg/dL), ligeira hipocaliémia (3,4 mmol/L), prolongamento do tempo de protrombina (INR 2,0), elevação da bilirrubina (2,0 mg/dL) e sem citólise hepática (AST/ALT 32/30 U/L).

Investigação

O doente foi internado para esclarecimento de síndrome febril de provável etiologia infecciosa.

No 2º dia de internamento, por agravamento do estado clínico fez controlo laboratorial que revelou deterioração dos parâmetros hematológicos: anemia (12,1 g/dl) macrocítica (105,8 fL), leucopénia (2,2 x 10^9/L) com neutropénia (1,16 x 10^9/L) e trombocitopénia (46 x 10^9/L). A observação morfológica do sangue periférico (SP) revelou neutrófilos com granulações tóxicas e corpos de Döhle (alterações sugestivas de infecção bacteriana) e algumas células linfóides com morfologia sugestiva de tricoleucócitos (figuras 1 e 2). Realizou TAC toraco-abdomino-pélvica que revelou envolvimento significativo das cadeias adenopáticas mediastínicas, abdominais e pélvicas associadas a hepatoesplenomegalia homogénea, indicando como provável diagnóstico, doença linfoproliferativa associada a infecção sistémica com importante expressão pulmonar.

Os exames microbiológicos culturais (hemoculturas e urocultura) e as serologias virais foram negativas. Iniciou antibioterapia de largo espectro com piperacilina e tazobactam. A imunofenotipagem linfocitária do sangue periférico detectou 0,55 x 10^9/L linfócitos B monoclonais com perfil imunofenotípico sugestivo de tricoleucemia (CD5 negativo, CD10 positivo, CD11c positivo homogéneo forte, CD20 positivo homogéneo, CD22 positivo homogéneo, CD23 negativo, CD25 positivo homogéneo, CD38 negativo, CD43 negativo, CD103 positivo heterogéneo, CD200 positivo homogéneo, CD305 positivo homogéneo forte, Fmc7 positivo homogéneo forte, IgM negativa, cadeias kappa das imunoglobulinas citoplasmáticas positivas fortes, cadeias lambda das imunoglobulinas citoplasmáticas negativas) (figura 3). No exame citológico da medula óssea (MO), observou-se uma acentuada infiltração por tricoleucócitos (figuras 4 e 5), confirmada pela imunofenotipagem e pelo exame histológico (infiltração de 80 a 90%).

Perante os resultados dos exames complementares de diagnóstico foi confirmado o diagnóstico de tricoleucemia (HCL). No decorrer do internamento, após resolução da infecção respiratória inicial, desenvolveu infecção respiratória associada aos cuidados de saúde, com identificação de Citrobacter freundii multirresistente cedendo à associação antibiótica com meropenem e amicacina. Após resolução do quadro infeccioso iniciou quimioterapia específica para a HCL.

Figura 1

Figura 1. Tricoleucócito e PMN com granulações tóxicas e corpos de Döhle (SP)

Figura 2

Figura 2. Tricoleucócito (SP)

Figura 3

Figura 3. Fucsia - células de tricoleucemia; Vermelho - células B normais; Verde claro - linfócitos T; Azul - linfócitos NK; Verde escuro - neutrófilos.

Figura 4

Figura 4. Tricoleucócitos (MO)

Figura 5

Figura 5. Tricoleucócitos (MO)

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da HCL inclui outras neoplasias linfóides de células B maduras que se apresentam com esplenomegália e com linfócitos com prolongamentos citoplasmáticos, nomeadamente, a HCL variante (HCL-v), o linfoma esplénico da zona marginal (SMZL) e o linfoma esplénico difuso da polpa vermelha (SDRPL).

Na HCL-v as células linfóides apresentam dados morfológicos intermédios entre os tricoleucócitos e os prolinfócitos (nucléolo proeminente) e, frequentemente, está associada com leucocitose. O perfil imunofenotípico é distinto (frequentemente, negativo para CD25 e CD123) (1).

Os linfócitos do linfoma esplénico da zona marginal, geralmente, têm prolongamentos mais curtos e polares; alguns têm morfologia linfoplasmocitóide. O perfil imunofenotípico é distinto (o CD103 é, geralmente, negativo) (2).

O linfoma esplénico difuso da polpa vermelha é uma doença rara caracterizada por uma infiltração do sangue periférico por linfócitos pequenos a médios, com nucléolo pequeno ou não visível e prolongamentos citoplasmáticos polares. As células B monoclonais expressam CD11c, têm expressão inconsistente de CD103 e, raramente, de CD123 ou CD25 (3).

Estas entidades (HCL-v, SMZL e SDRPL), geralmente, não manifestam monocitopénia e não expressam a mutação BRAF V600E.

Tratamento

Efectuou tratamento com corticoterapia e depois cladribina IV durante 5 dias, com suporte de G-CSF, tendo alta após 24 dias de internamento e continuando a ser observado em consulta de Hemato-Oncologia.

Seguimento

Atualmente, com evidência de excelente resposta à terapêutica, com TAC abdomino-pélvica de controlo sem adenopatias ou hepatoesplenomegália. O controlo analítico de Abril de 2018 já revelou normalização dos parâmetros hematológicos com recuperação total da função renal.

Discussão

A tricoleucemia (HCL) é uma neoplasia linfóide indolente de células B maduras apresentando-se com esplenomegália e dados citológicos, imunofenotípicos e histológicos característicos. Afecta, predominantemente, a medula óssea e o baço, tipicamente, com um pequeno número de tricoleucócitos no sangue periférico (4).

Afecta, mais frequentemente, homens de meia-idade; a razão homem: mulher é de 4/5:1, com uma idade média de 50 anos (5).

Os doentes podem estar assintomáticos ou apresentar-se com sintomas devidos à esplenomegália, queixas sistémicas (fadiga, astenia e emagrecimento), sinais hemorrágicos relacionados com a trombocitopénia ou infecções recorrentes relacionadas com a neutropénia e a monocitopénia. Embora, no passado, os doentes se apresentassem, frequentemente, com esplenomegália (cerca de 90%), este achado parece ser bem menos frequente em resultado de um diagnóstico mais precoce da doença (1).

O dado laboratorial mais frequente é a citopénia, geralmente, afectando duas ou três linhagens (5). Muitos doentes são pancitopénicos. Uma minoria dos doentes tem contagens leucocitárias elevadas com mais tricoleucócitos circulantes (4). A onocitopénia severa é habitual (4) e é uma manifestação, relativamente, sensível e específica (1).

Os tricoleucócitos são maiores dos que os linfócitos normais, o núcleo é, geralmente, redondo, oval ou reniforme, cromatina finamente dispersa, sem nucléolo evidente, citoplasma moderadamente abundante, fracamente basófilo, com finos prolongamentos citoplasmáticos irregulares (geralmente, em toda a periferia celular) e, consequentemente, contornos citoplasmáticos mal definidos.

O diagnóstico da HCL pode ser difícil de efectuar, inicialmente, quando as células neoplásicas são raras no sangue periférico (4).

A medula óssea é, geralmente, difícil de aspirar devido à fibrose, mas quando pode ser aspirada, os tricoleucócitos são mais numerosos do que no sangue periférico. O padrão histológico de infiltração da medula óssea é, altamente, característico (4). A biópsia e o aspirado da medula óssea são importantes para avaliar o grau de infiltração (1).

O imunofenótipo é crítico para estabelecer o diagnóstico. A co-expressão característica de CD19, CD20, CD11c, CD25, CD103 e CD123 confirma o diagnóstico de HCL. As células linfóides têm expressão positiva forte de CD200 (1). Foi proposto um score imunológico com os marcadores CD11c, CD25, CD103 e CD123, atribuindo-se 1 ponto quando cada um deles é expresso. Um score de 3 ou 4 é observado em 98% das HCL, enquanto nas outras entidades HCL-like, o score é, geralmente, baixo (0 a 1) (3). Em 10 a 20% dos casos, o CD10 pode ser positivo, como aconteceu no caso do nosso doente (2).

A mutação BRAF V600E foi identificada em até 80-90% dos doentes (3).

Embora a maioria dos doentes com HCL necessite tratamento, um pequeno número (cerca de 10%) pode não ter indicação para uma terapêutica imediata e pode ser vigiado, cuidadosamente, até ser necessária a terapêutica. Devem ser tratados quando têm sintomas relacionados com a doença ou quando, pelo menos, um dos seguintes parâmetros hematológicos se agrava: Hb < 11 g/dL, plaquetas < 100 x 10^9/L ou neutrófilos < 1 x 10^9/L. A terapêutica de indução são os análogos primários das purinas (cladribina ou pentostatina), obtendo-se respostas completas duráveis. No entanto, os doentes podem sofrer recaídas e necessitar terapêutica adicional (1).

O interesse do caso apresentado centra-se mais na sua vertente diagnóstica laboratorial. Tratava-se de um doente que se apresentou com um quadro febril de etiologia infecciosa, sem referência a esplenomegália e sem suspeita clínica de HCL. A observação morfológica do esfregaço de sangue periférico (ESP) revelou a presença de neutrófilos com morfologia sugestiva de infecção bacteriana, o que suportava a hipótese diagnóstica clínica. No entanto, a devida valorização da monocitopénia presente, alertou o médico patologista clínico para uma pesquisa mais atenta do ESP e para a detecção dos tricoleucócitos circulantes.

Os autores realçam a importância de, perante doentes com 1 ou mais citopénias, monocitopénia confirmada no ESP, particularmente mas não exclusivamente, em contexto infeccioso e em doentes com ou sem esplenomegália, ser ponderada a hipótese diagnóstica de tricoleucemia (HCL) e ser efectuada uma pesquisa cuidadosa de tricoleucócitos no esfregaço de sangue periférico.

Se tiver alguma questão adicional: