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Lúpus Eritematoso Sistémico e Hepatite Autoimune

Livro de casos clínicos - 2019 - Caso 4

Sumário

Os autores apresentam o caso de uma doente do sexo feminino de 30 anos de idade, angolana, diagnosticada com Lúpus Eritematoso Sistémico (LES) em 2005, sob terapia imunossupressora (metotrexato e ciclosporina) há quase 10 anos. Em 2014, apresenta quadro de agravamento com artralgias nos joelhos e cotovelos com rigidez matinal superior a 2 horas, acompanhado de dor abdominal com febre episódica e fadiga intensa. A reavaliação laboratorial mais recente revelou, para além do padrão homogéneo em títulos crescentes no teste de anticorpos antinucleares (ANA), um padrão citoplasmático filamentoso sugestivo de anticorpos anti-músculo liso (ASMA) caracterizados posteriormente em células transfetadas VSM 47, como anticorpos específicos anti f-actina. Estes autoanticorpos, associados a alterações borderline dos testes de função hepática fez pensar na associação do diagnóstico de Hepatite Autoimune (HAI) numa doente previamente diagnosticada com Lúpus Eritematoso Sistémico.

Introdução

O LES é uma doença autoimune multisistémica que envolve vários órgãos, em particular os rins, a pele e o sistema nervoso central. Apesar do envolvimento hepático não fazer parte do espectro do LES, está descrito que 60% destes doentes tem alterações hepáticas (1, 2). As drogas hepatotóxicas, a hepatite viral concomitante e a esteatose hepática não alcoólica (geralmente induzida por corticosteroides), são as causas mais comumente associadas a elevações das enzimas hepáticas no LES (1, 2). As doenças hepáticas associadas ao LES têm, geralmente, bom prognóstico e não evoluem para cirrose (1, 2).

A apresentação clínica da HAI varia entre uma doença assintomática, apenas reconhecida por alterações bioquímicas em achados de rotina, até uma hepatite aguda ou mesmo fulminante. A predominância no sexo feminino e os picos de incidência no início da vida adulta, em particular na 4ª década de vida, são característicos desta patologia. Em casos sintomáticos, há sintomas e sinais inespecíficos, como anorexia, náuseas, desconforto abdominal e icterícia. A artralgia é uma manifestação extra-hepática comum da HAI, que também é frequentemente observada no LES (2, 3). Os critérios laboratoriais para o diagnóstico de LES podem sobrepor- se aos de HAI, como acontece com os ANA positivos com títulos elevados e a presença de hipergamaglobulinemia. Contudo, se um doente já diagnosticado com LES apresentar elevação das transaminases e queixas progressivas do trato gastrointestinal, é mandatória a investigação de outras doenças autoimunes em consulta de reumatologia (3, 4).

Caso

Os autores apresentam o caso de uma doente do sexo feminino, com 30 anos de idade, natural de Angola, diagnosticada com LES em 2005 sob terapia imunossupressora com metotrexato e ciclosporina, há quase 10 anos. Em 2014 refere queixas progressivas de instalação recente com artralgia dos joelhos e cotovelos, rigidez matinal por períodos superiores a 2 horas, dor abdominal acompanhada de febre episódica e fadiga crescente. A reavaliação laboratorial mais recente revelou, para além do padrão homogéneo em títulos crescentes no teste de ANA, um padrão citoplasmático filamentoso sugestivo de anticorpos anti-músculo liso (ASMA) caracterizados posteriormente em células transfetadas VSM 47, como anticorpos específicos anti f-actina. Estes autoanticorpos, associados a alterações borderline dos testes de função hepática fez pensar na associação do diagnóstico de Hepatite Autoimune (HAI) numa doente previamente diagnosticado com Lúpus Eritematoso Sistémico.

Investigação

Foram investigadas várias doenças infecciosas, incluindo hepatite A e B, tuberculose, malária, febre escaro-nodular, pesquisa de vírus emergentes como dengue e Chikungunya, bem como parasitoses gastrointestinais, sem quaisquer resultados relevantes, excluindo, assim, a origem infecciosa do quadro hepatite-like.

QUADRO RESUMO DA INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL

QUADRO RESUMO DA INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL

IMAGENS DE IMUNOFLUORESCÊNCIA

Figura 1

Figura 1. Anticorpos antinucleares (ANA) por imunofluorescência (IFI) em substrato de células Hep-2: Padrão nuclear homogéneo com título > 1/640, associado a padrão citoplasmático filamentoso sugestivo de anticorpos anti-musculo liso (ASMA).

Figura 2

Figura 2. Anticorpos antinucleares (ANA) por imunofluorescência (IFI) em substrato de fígado de primata: Padrão nuclear homogéneo com título > 1/640 revelado nos núcleos dos hepatócitos, associado a reação nos canalículos biliares do fígado de primata sugestivo de anticorpos anti-musculo liso (ASMA).

Figura 3

Figura 3. Anticorpos anti f-actina em células transfetadas VSM 47: Padrão citoplasmático filamentoso espiculado no citosqueleto das células VSM47, revelando especificidade para anticorpos anti f-actina.

Discussão

A alteração no padrão dos anticorpos antinucleares (ANA) obriga a uma investigação laboratorial orientada para a pesquisa de marcadores específicos como os autoanticorpos anti-soluble liver antigen (SLA), anti-musculo liso (ASMA) com especificidade para anticorpos anti f-actina, e outros antigénios microssomais hepáticos como os autoanticorpos anti-liver kidney (LKM) (1, 2, 3), anticorpos estes que geralmente não se encontram no LES, mas que estão associados a HAI. Uma vez que o diagnóstico de HAI é relevante para os doentes com LES, pois influencia a escolha dos imunossupressores e os resultados a longo prazo, deve dar-se especial atenção à diferenciação entre a associação de HAI e o envolvimento hepático inespecífico do LES (2). A elevação das enzimas hepáticas é comum no LES. A doença hepática associada ao lúpus deve ser diferenciada da hepatite causada por drogas, toxinas, doenças virais e outras doenças autoimunes (4). A distinção clínica nem sempre é fácil. As estratégias de tratamento são geralmente determinadas pela doença predominante. O tratamento recomendado para ambas, HAI e LES, preconiza uma estratégia imunossupressora com sucesso terapêutico. Não existem dados disponíveis sobre o prognóstico da HAI com LES concomitante, mas os estudos sugerem que a obtenção de uma remissão completa é fundamental, não só para a sobrevivência a longo prazo, mas também para a qualidade de vida destes doentes.

Conclusão

O diagnóstico diferencial da alteração dos testes de função hepática nos doentes diagnosticados com LES, com envolvimento hepático não específico ou com HAI, é exigente. A histologia pode ser essencial para distinguir a HAI do envolvimento hepático não específico. Distinguir se o doente tem doença hepática primária com características clínicas e laboratoriais autoimunes associadas a LES – como a HAI – ou se a elevação das enzimas hepáticas é uma manifestação do LES, continua a ser um desafio difícil para os clínicos. A interface laboratório-clínica é de importância fundamental, resultando no melhor conhecimento e aplicação dos diversos testes laboratoriais nos algoritmos decisionais.

Se tiver alguma questão adicional: