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Doente imunodeprimido, infectado com Mycobacterium bovis: BCG

Livro de casos clínicos - 2019 - Caso 2

Sumário

Este artigo tem como objectivo a apresentação e discussão de um caso clínico num doente imunodeprimido, infectado com Mycobacterium bovis: BCG. Homem de 47 anos, com o diagnóstico de neoplasia do pulmão, a fazer terapia coadjuvante com quimioterapia e radioterapia nos últimos 5 anos. Em Agosto de 2013 o doente iniciou quadro caracterizado por mialgias e febre associado a um abcesso no local de inserção do cateter permanente subclávio (Portocath®), que se veio a agravar até Setembro de 2013. Nessa altura foi realizada a colheita, em condições de assépsia, de uma amostra purulenta do local do implante subcutâneo. O processamento da amostra incluiu exame micobacteriológico directo (com coloração de Ziehl-Neelsen), que revelou a presença de bacilos ácido-álcool resistentes, e exame cultural, com inoculação em meios de cultura líquida e sólida (VersaTrek® e Lowenstein-Jensen), tendo a cultura para estudo micobacteriológico sido positiva para Mycobacterium tuberculosis complex BCG. A identificação do Mycobacterium tuberculosis complex BCG foi realizada por método de biologia molecular PCR em tempo real. Dos antecedentes pessoais o único contacto com o BCG referido foi história de vacinação com BCG na infância. Não houve qualquer associação com inoculação ou instilação recente, durante o ratamento, com Mycobacterium bovis BCG. No caso descrito a origem do agente infeccioso não ficou estabelecida.

Introdução

O Mycobacterium bovis: Bacillus Calmette-Guérin (BCG) tem sido estudado em Medicina desde há mais de 100 anos (2) e primeiramente utilizado na vacina como prevenção para a tuberculose. A vacina BCG é uma variante viva atenuada de Mycobacterium bovis e é administrada actualmente em todo o mundo. Apesar de pouco frequente, as complicações da vacina estão bem documentadas na literatura científica (1). Estas complicações ocorrem durante o período pós-vacinação (até dois anos após) e podem ser locais ou, mais raramente, sistémicas (sobretudo em doentes imunocomprometidos). Recentemente, em meados do século XX, foi reconhecido o potencial anticancerígeno do BCG em vários tipos de cancro, melanoma e leucemia. Hoje em dia os benefícios da imunoterapia no cancro superficial da bexiga estão bem definidos (2). Em relação, ao cancro de pequenas células do pulmão, existem alguns estudos sobre os potenciais benefícios do uso do BCG como imunoterapia adjuvante à terapia convencional, contudo o seu uso encontra-se em validação (3). A maioria dos casos descritos na literatura, a propósito da infecção oportunista por Mycobacterium bovis BCG, está associada a uma inoculação ou instilação recente. No caso reportado, a origem do agente infeccioso não foi estabelecida.

Caso

Homem de quarenta e sete anos, caucasiano, guarda prisional, fumador desde há 18 anos (20 a 30 cigarros por dia), com uma história pessoal de vacinação com BCG na infância. Dos antecedentes familiares relevantes há a referir, pai com diagnóstico de tuberculose pulmonar.

Foi visto pela primeira vez em Maio de 2005 e seguido desde então, no Centro de Oncologia do Hospital Particular Cuf Descobertas, com o diagnóstico de carcinoma de pequenas células do pulmão, no lobo superior direito, e tumor neuroendócrino no fígado. Inicialmente fez tratamento com quimioterapia administrada através de cateter permanente (implantofix®) e posteriormente radioterapia, para lesão pulmonar residual. Não há a referir história prévia de imunoterapia adjuvante com Bacillus Calmette-Guérin (BCG). Durante o tratamento as principais complicações incluíram infecções respiratórias recorrentes, síndrome miasténica, trombose venosa, pneumonite radica extensa e reacção alérgica à carboplatina, durante a quimioterapia. Em Agosto de 2013, o doente iniciou quadro de mialgia e febre (38,3°C), sem outra sintomatologia associada, pelo que recorreu ao Hospital de Dia, do mesmo hospital, onde foi observado em regime de ambulatório. Em Setembro de 2013, pelo agravamento do quadro clínico descrito foi internado, com o diagnóstico de Síndrome Febril Indeterminado, tendo iniciado antibioterapia empírica com azitromicina e amoxacilina com ácido clavulânico. Nesta altura não foi identificado agente etiológico. O doente teve alta hospitalar apirético e com os parâmetros analíticos estabilizados.

Um mês após a alta foi observado na consulta de Hemato-Oncologia, onde o exame objectivo revelou sinais inflamatórios da pele, sobre a loca da válvula do cateter subcutâneo, e febre matinal intermitente (37,5°C-38,0°C). Os parâmetros

laboratoriais revelaram um aumento na PCR de 2,3 para 3,9 mg/dL, e níveis de aminotransferases acima dos valores de referência. Iniciou antibioterapia empírica com Flucloxacilina 4g/dia, tendo-se optado, nesta altura, pela manutenção do cateter, apesar dos sinais inflamatórios. Após o início da antibioterapia empírica, o doente desenvolveu um abcesso subcutâneo no local de implantação do cateter, colecção que foi drenada, colhida e enviada amostra purulenta para estudo laboratorial bacteriológico. O cateter foi removido e enviado para exame bacteriológico. O exame direto da amostra de pus, após coloração com Ziehl-Neelsen (ZN), revelou a presença de bacilos ácido-álcool resistentes. O exame cultural apresentou crescimento para Mycobacterium cuja identificação por biologia molecular, revelou Mycobacterium tuberculosis complexo: BCG.

O doente foi encaminhado para um centro de tuberculose pulmonar e iniciou terapêutica com tuberculostáticos, mantendo a quimioterapia. Desde o final de Fevereiro até Maio de 2014 manteve terapia tuberculostática, com isoniazida, etambutol e rifampicina, devido ao diagnóstico de tuberculose extra-pulmonar, mudando posteriormente para terapia dupla, com isoniazida e rifampicina. O doente parou o tratamento após 10 meses, com resolução clínica da infecção. Permaneceu sem infecção por Mycobacterium tuberculosis (BCG), até o início de Janeiro de 2017, quando faleceu devido à doença de base.

Figura 1

Figura 1. Observação de bacilos ácido-álcool resistentes, após coloração por Ziehl-Neelsen

Investigação

  • Hemograma: anemia (10.6 g/dl), leucopénia (1.7 x10^9/L) e trombocitopénia (35 x10^9/L)>> pancitopenia
  • Função Hepática: LDH 379, AST 89, ALT 115, GGT 203, FA 214
  • (+)PCR 11.3 x10^9/L
  • Serologia para CMV e EBV: negativa
  • Serologia para Salmonella e Rickettsia: negativa
  • Exame bacteriológico do pus: negativo
  • Exame bacteriológico do cateter: negativo
  • Exame micobacteriológico do pus:
    • Exame directo (coloração Ziehl-Neelsen): (+ + +) para bacilos ácido-álcool resistentes 11
    • Exame cultural: meio líquido (VersaTREK ®) e meio sólido (Lowenstein-Jensen): positivo para Mycobacterium tuberculosis complex
    • Identificação (PCR tempo-real): Mycobacterium tuberculosis complex: BCG
  • Teste de sensibilidade aos antibacilares:
    • Resistente: Pirazinamida
    • Sensível: Isoniazida, Rifampicina e Etambutol

Discussão

A Tuberculose Extra-Pulmonar (Tuberculose sem envolvimento pulmonar), representa, segundo a Organização Mundial de Saúde, 15% dos 6,3 milhões de casos incidentes de tuberculose reportados em 2016 (4).

No caso clínico descrito a persistência da febre e a presença de pus no local de implantação do cateter foram dois aspectos determinantes na evolução clínica. O doente não apresentou doença pulmonar ativa concomitante. A vacinação com o Bacillus Calmette Guérin (BCG) atenuado é administrada como medida preventiva para a tuberculose. No caso descrito o doente foi vacinado durante a infância, com a vacina BCG, como fazendo parte do plano nacional de vacinação. Os casos relatados na literatura associados à doença invasiva pelo BCG são, na sua maioria, integrados no contexto de complicações pós vacinação com BCG (até dois anos após vacinação) com maior incidência em crianças e em doentes imunocomprometidos. A disseminação da doença por BCG é rara, mais frequente em homens, e está associada a uma má resposta ao tratamento padrão e a um pior prognóstico (1). O BCG tem sido usado também como terapia imunológica em certas patologias oncológicas, em particular no cancro superficial da bexiga e no cancro do pulmão. Na literatura científica estão descritos alguns casos de infecções por BCG em doentes com carcinoma superficial da bexiga sob imunoterapia coadjuvante (2). O uso da BCG como agente imunoterapêutico associado a quimioterapia e radioterapia convencional no cancro de pequenas células do pulmão necessita de mais investigação.

No caso relatado, não havia história de tratamento adjuvante com BCG. A observação laboratorial de bacilos ácido-álcool resistentes no exame directo do pus após a coloração por Ziehl-Neelsen (Figura 1), como fazendo parte do protocolo laboratorial de processamento de amostras purulentas, permitiu considerar o diagnóstico de Tuberculose, neste caso, com instituição de terapêutica dirigida e remissão completa da infecção.

O isolamento e identificação do complexo Mycobacterium tuberculosis: BCG na cultura do pus confirma o diagnóstico, continuando este método a ser o método de referência para o diagnóstico desta doença.

Pontos a destacar

  • Nos casos de infecções crónicas que não respondem aos antibióticos, considerar microrganismos de crescimento lento e fastidioso.
  • Considerar no fluxograma da rotina laboratorial, a realização do exame directo com coloração ácido-álcool resistente no protocolo de processamento das amostras purulentas.
Se tiver alguma questão adicional: