facebook pixel

Telefone 212 693 530* *Custo de Chamada para a Rede Fixa de acordo com o seu tarifário

Macroamilasémia: mito ou realidade?

Livro de casos clínicos - 2019 - Caso 1

Sumário

A macroamilasémia é uma entidade laboratorial geralmente benigna, em que a molécula de amilase forma um grande complexo molecular ligado a imunoglobulinas ou a polissacarídeos. Este complexo molecular torna-se numa partícula heterogénea de grandes dimensões sem atividade biológica que, pela acentuada diminuição da depuração renal, tem uma semivida prolongada e doseamentos normais de amilasúria. Diversas fontes afirmam que cerca de 2-5% dos pacientes com hiperamilasémia têm macroamilase; está igualmente descrita em 1% dos indivíduos aparentemente saudáveis com níveis aumentados de amilase. A macroamilasémia está associada a algumas doenças autoimunes como a doença celíaca, sendo causa frequente de investigação para exclusão de pancreatite nestes doentes. Os autores descrevem o caso de um jovem do sexo masculino saudável, sem sinais ou sintomas relevantes, com elevação da amilase sérica em exames laboratoriais de rotina, abordando a importância das discussões clínicas e laboratoriais.

Introdução

Considerando a hiperamilasémia a base do diagnóstico laboratorial da pancreatite aguda é importante que os clínicos identifiquem a macroamilasémia, como uma entidade laboratorial geralmente benigna e transitória (1). Os esclarecimentos de achados laboratoriais, muitas vezes sem contexto clínico, geram pedidos de exames complementares de diagnóstico subsequentes causando constrangimentos a vários níveis nos cuidados de saúde, com impacto importante nos doentes com custos e ansiedade desnecessários (2). A macroamilasémia representa uma das entidades descritas como immunoglobulin-complex enzyme (ICE) e foi descoberta por Wilding et al em 1964 (3) e posteriormente designada de “macroamilasémia” por Berk et al, em 1967 (4).

Existem várias referências na literatura a outras enzimas como a lactato desidrogenase, fosfatase alcalina, creatinina quinase, alanina aminotransferase e glicose-6-fosfatase desidrogenase que podem estar em circulação sob a forma de grandes complexos moleculares por ligação a imunoglobulinas, representando uma possível causa de níveis séricos elevados e inesperados na ausência de um contexto clínico (5, 6). Vários estudos afirmam que cerca de 2-5% dos indivíduos com hiperamilasémia têm macroamilase, e que pode estar presente em 1% de indivíduos aparentemente saudáveis, mas com níveis alterados de amilase (7-9). Existem vários estudos sobre a associação desta ICE a doenças autoimunes como a doença celíaca, a colite ulcerosa, o lúpus eritematoso sistémico e o síndrome anti-fosfolipídico (10-12), patologias que devem ser investigadas e excluídas se a hiperamilasémia persistir.

Na prática laboratorial são vários os exemplos que demonstram a eficiência da utilização de testes reflexos e de algoritmos decisionais para encurtar o tempo de investigação e racionalizar o uso de testes laboratoriais. Estão descritos vários algoritmos para a investigação de macroamilase, em contexto laboratorial (13,14). Estes algoritmos são capazes de determinar, com elevados níveis de confiança, se a fisiopatologia subjacente é devida à presença de pancreatite aguda ou a outras causas de hiperamilasémia associada a ICE. Existem vários métodos laboratoriais para o estudo de macromoléculas, como a eletroforese em gel de agarose, o teste de precipitação pelo polietilenoglicol (PEG), a cromatografia e, mais recentemente, a espectrometria de massa tandem (15). Conforme referido noutros estudos semelhantes, (13, 16, 17), utilizámos o método de precipitação pelo polietilenoglicol, PEG 6000 (Wako Junyaku kogyok.k. TM, Tóquio, Japão) para realizar a separação da amilase do complexo molecular.

Caso

Examinámos um indivíduo de 36 anos, ex-atleta de alta competição de futebol, saudável, que em avaliação laboratorial de rotina surge com valores elevados de amilase total (362 U/L), com lipase total, enzimas hepáticas e testes do perfil lipídico dentro dos valores de referências. Encontrava-se assintomático, sem história de ingesta de fármacos, álcool ou suplementos alimentares, não tinha história recente de doença infecciosa.

Investigação

Foram solicitados exames laboratoriais adicionais como o doseamento das frações de amilase salivar e pancreática, que se revelaram normais; a ecografia abdominal não revelou cálculos biliares nem ectasia dos ductos biliares revelando densidade normal dos tecidos hepático e pancreático. O médico assistente entrou em contato com o laboratório para a discussão dos aspetos clínicos e ponderar que testes subsequentes estariam indicados para o esclarecimento desta situação. Foi colocada por nós a hipótese de se tratar de uma interferência na amostra, eventualmente pela presença de proteínas de alto peso molecular, como imunoglobulinas, como causa da elevação da amilase sem contexto clínico. A partir de uma nova amostra de sangue, foi realizado o procedimento técnico de precipitação com polietilenoglicol (PEG) com doseamento subsequente de amilase no sobrenadante. A taxa de recuperação de amilase sérica foi de 34,25%, revelando valores normais de amilase (114 U/L) e a presença de imunoglobulinas interferentes como causa da hiperamilasémia.

Diagnóstico diferencial

Para além da pancreatite aguda, a amilase sérica elevada está descrita na oclusão intestinal, na úlcera péptica perfurada, na doença do trato biliar, na patologia tubo-ovárica, na cetoacidose diabética, na patologia das glândulas salivares e na insuficiência renal.

Resultados e seguimento

Não foram necessários tratamentos ou investigações adicionais e o doente retomou as suas atividades diárias normais.

Discussão

A macroamilasémia representa uma alteração bioquímica em que um doseamento sérico elevado de amilase está presente em indivíduos assintomáticos e na ausência de patologia associada. A macroamilase, associada a imunoglobulinas, é indistinguível da amilase normal numa análise quantitativa de rotina e provoca uma falsa elevação do doseamento sérico total. Para o esclarecimento desta entidade laboratorial estão descritos vários métodos laboratoriais, (13, 16, 17), a maioria dos quais não são realizados nos procedimentos diários da rotina laboratorial, razão pela qual, elevações séricas da amilase com valores normais de lipase, com uma normal ou diminuída excreção urinária de amilase ou com a razão amilase-depuração da creatinina inferior a 1%, são geralmente indicadores da necessidade de realizar metodologias mais complexas para o esclarecimento clínico de uma eventual macroamilasémia. Além da pancreatite, a amilase sérica está aumentada na obstrução intestinal, na úlcera péptica perfurada, na doença do trato biliar, na patologia tubo-ovariana, na cetoacidose diabética, nas lesões nas glândulas salivares e na insuficiência renal (13). Além da exclusão desta ICE, devem ser realizados doseamentos das fracções da isoamilase (pancreática e salivar) que permite identificar elevações da amilase sérica devido a patologia das glândulas salivares. Um estudo com 117 doentes com hiperamilasémia

persistente e sem qualquer patologia associada, revelou que após a investigação laboratorial, o pâncreas não era a causa desta alteração em quase 80% dos casos (18). Concluiu, igualmente, que sendo altamente improvável que a hiperamilasémia persistente e inexplicável seja de origem pancreática, o doseamento das fracções da isoamilase pode ser um teste mais indicado para a abordagem inicial destes casos, quando comparado com uma investigação clínica extensa e laboriosa. Estes indivíduos identificados como tendo níveis aumentados de amilase em avaliações laboratoriais de rotina, acabam muitas vezes por fazer, pelo menos, dois procedimentos diagnósticos radiológicos ou endoscópicos. Muitos doentes acabam mesmo por fazer uma TAC abdominal como parte dessa investigação. Os exames alargados nestes doentes são dispendiosos e provavelmente desnecessários na maioria dos casos. A presença de macroamilase tem sido associada a pacientes com doença celíaca, pois a presença de macroamilasémia não é um achado laboratorial acessório, mas está de alguma forma ligada ao mecanismo patogenético da doença, uma vez que desaparece após o início da dieta isenta de glúten (19, 20). O teste de polietilenoglicol associado à cromatografia líquida foi sugerido como o método mais fiável para a identificação do complexo macromolecular (17). No nosso laboratório, realizamos o teste de precipitação com PEG dissolvendo 2,5 g de PEG 6000 (Wako Junyaku kogyo K.k., Tóquio, Japão) em 10 mL de água destilada. Volumes iguais de uma solução de 25% de PEG e do soro do doente são misturados e centrifugados a 3000 x g por 5 min. No sobrenadante obtido é realizado o doseamento da amilase total por quimiluminescência no sistema automatizado Advia Centaur XPTM, Siemens. A taxa de recuperação de amilase é calculada pela seguinte fórmula:

Taxa de recuperação Amilase (%) = 2 x Amilase (após absorção) / Amilase (antes da absorção) x100.

A interpretação dos resultados é feita de acordo com o seguinte algoritmo:

Figura 1

Figura 1. Algoritmo decisional para a investigação laboratorial de macroamilase

No caso descrito, a taxa de recuperação foi de 34,25%, o que sugere a presença de interferência de proteínas de alto peso molecular, por exemplo, imunoglobulinas, revelando a verdadeira causa de um nível sérico elevado de amilase. Esses resultados foram discutidos com o clínico, e como o doente não apresentava sinais ou sintomas significativos, nenhuma investigação ou tratamento adicional foram necessários, tendo retomado as suas atividades diárias com normalidade.

Pontos a destacar

  • Nos indivíduos com alterações bioquímicas como o aumento de enzimas séricas, sem contexto clínico associado, deve ser considerado o estudo das ICE antes de iniciar uma investigação extensa que tem demonstrado poucos resultados, recorrendo a exames complementares de diagnóstico desnecessários, muitas vezes com procedimentos invasivos, com desperdício de tempo e recursos financeiros.
  • Estes casos intrigantes realçam a importância das discussões clínicas e laboratoriais. Os laboratórios clínicos devem estar envolvidos, na investigação clínico-laboratorial, mas também no processo de decisão clínica.
  • A interface laboratório-clínica é de importância fundamental para garantir que o doente recebe um atendimento de qualidade, resultando no melhor conhecimento e aplicação dos diversos testes laboratoriais nos algoritmos decisionais.
Se tiver alguma questão adicional: